A necessidade de prescrever o apoio educacional para alunos com deficiência intelectual precipitou a necessidade simultânea de distinguir o que é próprio de uma intervenção específica para a deficiência intelectual, complementar ao currículo comum, do que é substitutivo e do que é meramente compensatório.
A Educação Especial, durante cerca de um século, manteve as mesmas características do ensino regular desenvolvido nas escolas tradicionais, como um conjunto de práticas adaptativas. Num primeiro momento, para fundamentar/organizar as tarefas educativas especializadas, essas escolas limitaram-se a ensinar os seus alunos subdividindo-os em categorias educacionais: “treináveis” e “educáveis”, etc.
O movimento pela inclusão escolar manteve resquisios das práticas adaptativas, com o objetivo de proporcionar a inserção e/ou reinserção dos alunos com deficiência na escola regular. O aspecto menos positivo dessa prática adaptativa reside no fato de se insistir que o ensino de deficientes intelectuais deve realizar-se a partir do que é concreto, ou seja, palpável, tangível, insistentemente reproduzido, de forma alienante, na suposição de que os alunos com deficiência intelectual só “aprendem no concreto”, esquecendo-se de que, tal como todos os outros, só aprendem no vivenciado, o que é obviamente muito diferente.
A idéia presente nessa concepção e prática de ensino, através do concreto, corresponde a uma pseudonecessidade, pois o concreto, que neste caso se refere ao real, não dá conta do que um objeto é em toda a sua extensão. Por outro lado, não se esgota no significado que cada pessoa pode atribuir a esse objeto, precisamente em função da sua vivência e referências anteriores. Para muitos alunos, contar fósforos não significa uma ação de aprendizagem dos números e muito menos a possibilidade de construir a idéia de número como o professor gostaria. O aluno pode manipular durante muito tempo esse material, procurando entender simplesmente como funciona para acender uma fogueira.
Por muito que se procure o conhecimento a partir desse concreto, ele nunca se esgotará na sua dimensão física. A compreensão total do real é algo que nunca alcançaremos, mesmo no mais avançado nível de entendimento e de cognição; na melhor das hipóteses, poderemos fazer aproximações cada vez mais interessantes a essa compreensão. Por outro lado, a repetição incessante, até que se obtenha sucesso, de uma ação sobre um objeto, sem que o sujeito lhe atribua um significado, é inútil, sem qualquer tipo de repercussão intelectual, e estéril, pois nada produz de novo, colocando apenas as pessoas com deficiência intelectual numa posição inferior, enfraquecida e debilitada perante o conhecimento.
O grande equívoco de uma pedagogia que se baseia nessa lógica do concreto e da repetição alienante é negar o acesso da pessoa com deficiência intelectual ao plano abstrato e simbólico da compreensão, isto é, negar a sua capacidade para estabelecer uma interação simbólica com o meio. O perigo deste equívoco é o de empobrecer cada vez mais a condição das pessoas com deficiência intelectual na utilização do pensamento, no uso do raciocínio e na capacidade de descobrir o que é visível e prever o que é invisível, tal como a capacidade de criar e inovar, enfim, reduzir-lhe o acesso a tudo o que é próprio da ação de conhecer. Como exemplo desta lógica repetitiva podemos lembrar: decorar famílias silábicas, aprender a fazer contas de somar, subtrair, multiplicar, etc., sempre com a mesma operação aritmética; responder copiando do livro; colorir desenhos para treino motor com cores pré-definidas, enfim, um conjunto muito vasto de atividades repetitivas que sustentam o ensino de má qualidade em geral.
A educação especializada tem sido utilizada para tentar “adaptar” os alunos com deficiência intelectual à escola regular tradicional, sobretudo quando é uma escola especial que disponibiliza a educação especializada. Assim, não surpreende que muitos defendam a inclusão exclusivamente para os alunos “adaptáveis” ao modelo de exclusão da escola regular. E muito menos surpreende que não se dêem conta da irracionalidade das suas próprias convicções.
Nova visão para avançarmos
O apoio educacional deve decorrer de uma nova visão da educação especial. Esse apoio só tem sentido se existir para que os alunos possam aprender o que é diferente do currículo comum e que se revele necessário para que os alunos possam ultrapassar as barreiras que lhes são impostas pela deficiência.
As barreiras na deficiência intelectual diferem muito das barreiras encontradas nas outras deficiências. Consistem essencialmente em obstáculos relativos à maneira de lidar com o saber em geral e que se refletem preponderantemente na construção do conhecimento escolar, resultando daqui uma dificuldade acrescida em distinguir aquilo que precisam aprender que seja diferente do currículo comum. Por esta razão, o apoio especializado, realizado de acordo com as modalidades de treino repetitivo e de adaptação, reforça ainda mais a condição de deficiente do aluno. Estas formas tradicionais de intervenção (repetitivas e adaptativas) mantêm o aluno num nível de compreensão muito primitivo que as pessoas com deficiência intelectual têm dificuldade em ultrapassar, isto é, inibem os processos de auto-regulação do conhecimento. Torna-se, portanto, necessário que o aluno com deficiência intelectual seja estimulado a progredir nos diferentes níveis de compreensão, criando novos meios para se adequar a novas situações, isto é, desafiando-o a fazer regulações ativas.
Para a pessoa com deficiência intelectual, a acessibilidade não depende só de suportes externos ao sujeito, mas tem a ver com o abandono de uma posição passiva e automatizada face à aprendizagem para que tenha acesso e se aproprie ativamente o saber.
Com efeito, a pessoa com deficiência intelectual depara com inúmeras barreiras nas interações que realiza com o meio para apreender ou assimilar, desde logo, os componentes físicos do objeto do conhecimento: o reconhecimento e a identificação da cor, forma, textura, tamanho e outras características que deveria retirar diretamente do objeto. De pouco adianta o treino repetitivo para que identifique essas características a retirar do objeto, mais valendo a riqueza da sua vivência perante ele, do que muitas horas de “ensino das cores” ou de outras coisas do gênero. Estas dificuldades resultam do fato de as pessoas com deficiência intelectual apresentarem precisamente limitações no funcionamento, na estruturação e na reelaboração do conhecimento. Por isso mesmo, não adianta propor atividades que insistam na repetição pura e simples de noções de cor, forma, etc., para que, a partir dessa aprendizagem, o aluno consiga dominar essas noções e as restantes propriedades físicas dos objetos, e ainda consiga transpô-las para outros ou para um outro contexto. A criança sem deficiência intelectual consegue espontaneamente retirar informações do objeto e construir progressivamente conceitos: nem precisa freqüentar a escola para isso. Pelo contrário, a criança deficiente intelectual precisa de apoio, isto é, que alguém a ajude a exercitar a sua atividade cognitiva, de modo a conseguir o mesmo ou uma aproximação do mesmo que conseguem alcançar espontaneamente os seus colegas não deficientes.
A passagem das ações práticas e a coordenação dessas ações para o pensamento são partes de um processo cognitivo que é naturalmente acessível àqueles que não têm deficiência intelectual. Este exercício implica trabalhar a abstração através da projeção das ações práticas em pensamento. Para aqueles que têm deficiência intelectual, essa passagem deve ser estimulada e provocada, de modo a que o conhecimento possa tornar-se consciente e interiorizado.
O apoio educacional as crianças com deficiência intelectual deve, portanto, centrar-se na dimensão subjetiva do processo de conhecimento, complementando o conhecimento acadêmico individual e o ensino coletivo que caracterizam a escola regular. O conhecimento acadêmico implica no domínio de um determinado conteúdo curricular; o apoio educativo, por seu turno, refere-se à forma através da qual o aluno consegue tratar qualquer conteúdo curricular que lhe seja apresentado e ao modo como consegue aceder ao seu significado, ou seja, compreendê-lo. Alguns chamam a estas características do apoio, nem sempre acertadamente, “funcionalidade do currículo”, ou “currículo funcional”.
O apoio educacional não é ensino individual, nem reforço escolar. Pode e deve ser realizado em grupo, desde que se tenha em conta as formas específicas de cada aluno se relacionar com o saber. Este respeito pelas formas específicas de aceder ao saber não implica apoiar esses alunos, formando grupos homogêneos com o mesmo tipo de problema ou de desenvolvimento. Pelo contrário, os grupos devem constituir-se obrigatoriamente por alunos da mesma faixa etária e em vários níveis do processo do conhecimento.
O apoio educacional para o aluno com deficiência intelectual deve permitir que esse aluno saia de uma posição de “não saber” ou de “recusa de saber” para se apropriar de um saber que lhe é próprio, ou melhor, que ele tenha consciência de que foi ele quem o construiu.
Devem ser proporcionadas situações, que incluam ações em que o próprio aluno tenha participação ativa ou que façam parte da sua experiência de vida. Ampliar a capacidade de abstração não significa apenas desenvolver a memória, a atenção, as noções de espaço, tempo, causalidade, raciocínio lógico em si mesmas. Muito menos tem a ver com a desvalorização da ação direta sobre os objetos de conhecimento, pois a ação é o primeiro patamar da construção mental.
O objetivo do apoio educacional é o de proporcionar condições e liberdade para que o aluno com deficiência intelectual possa construir a sua inteligência, dentro do quadro de recursos intelectuais que lhe é disponível, tornando-se agente capaz de produzir significado/conhecimento.
O contato direto com os objetos a serem conhecidos, isto é, com a sua “concretude” não pode ser desvalorizado, no entanto o importante é intervir no sentido de fazer com que esses alunos se apercebam da capacidade que têm para pensar, para realizar ações em pensamento, para tomar consciência de que são capazes de usar a inteligência de que dispõem e de ampliá-la, através do seu esforço de compreensão, ao resolver uma situação-problema qualquer.
O aluno com deficiência intelectual, como qualquer outro aluno, precisa desenvolver a sua criatividade, a capacidade de conhecer o mundo e de se conhecer a si mesmo, e não apenas superficialmente ou através do que pensam os outros.
Para possibilitar a produção do saber e preservar a sua condição de complemento do ensino regular, o apoio educacional tem de se desvincular da necessidade típica de produção acadêmica. A aprendizagem dos conteúdos acadêmicos limita a ação do professor, principalmente no que diz respeito à promoção da liberdade de tempo e de criação que o aluno com deficiência intelectual precisa de ter para se organizar perante o desafio do processo de construção do conhecimento. Este processo de conhecimento, ao contrário do que acontece com a aprendizagem acadêmica típica, não é determinado por metas a serem atingidas dentro de um determinado nível de ensino. Desta evidência, resultou a designação, nem sempre utilizada com propriedade de “currículo alternativo”. Todavia da forma como os alunos com deficiência intelectual se apropriam do conhecimento não resulta necessariamente a conveniência de serem retirados das situações que a escola associa à aquisição de conteúdos tipicamente acadêmicos. Essas situações, ou são suficientemente ricas para todos e, por conseguinte também para alunos com deficiência intelectual, ou são uma estratégia eficaz de promoção do insucesso escolar para todos, e que alguns alunos, por mérito próprio, conseguem escapar.
Nestas condições, paradoxalmente, os alunos com deficiência intelectual podem conquistar importantes aquisições escolares. Aquilo que eles sugerem é que os professores deixem de incutir conteúdos acadêmicos sem sentido de funcionalidade.
Marina da Silveira Rodrigues Almeida
Consultora em Educação Inclusiva
Psicóloga e Pedagoga especialista
Instituto Inclusão Brasil